segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Antibióticos - controle da venda e uso.

Originalmente postado em 26 de Junho de 2009

O Brasil é um país de muitas dualidades. Existe uma massa enorme na população que vive à margem do binômio informação/conhecimento, relacionado ao que acontece no país e ao dia-a-dia. São pessoas que constituem a maioria, com um perfil sócio-econômico baixo, e servem como massa de manobra de uma parte da minoria oposta: governantes e políticos, guardadas as exceções. Essa camada da população; ou não têm acesso à informação crítica; ou, se tem, não lhe dá bola.

Suas perspectivas e objetivos são o hoje e o agora, a subsistência ou viver o seu dia-a-dia. Opinião e mobilização são processos nebulosos na sua materialização e execução.

De outro lado existe uma minoria informada dividida em muitas “tribos” ou subdivisões sociais. Os que de tudo reclamam e criticam, os engajados, os técnicos, os que se locupletam e assim por diante.

Porque um preâmbulo tão chato? Porque algumas medidas que se impõem e/ou são tomadas pela parte técnica do poder público, uma parte que ainda pensa na coletividade e no bem público muitas vezes precisa enfrentar um jogo de manipulações, de pressões dos mais variados tipos, muitas vezes em nome de interesses escusos e mesmo esquemas empresariais, cujo único objetivo é o lucro pelo lucro, sem compromisso social. Compromisso social que, muitas e muitas vezes, é mesmo invocado para confundir e manter um estado de coisas altamente prejudicial à população.

É o que vem ocorrendo com a divulgação de intenção da ANVISA ( Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no sentido de tornar mais rigoroso o controle sobre a venda de antibióticos nas farmácias, a exemplo do que passou a ser feito com os anti-inflamatórios.

Há poucos dias ouvi um Sr. pelo rádio, se posicionando contra a medida, representante que é dos donos de farmácia. Os argumentos eram risíveis e de uma ignorância impar. Alegava que “a pessoa que já tinha tido determinada doença e sabia que era a mesma” ( sic – palavras literais) podia muito bem comprar o mesmo antibiótico, que já funcionou uma vez e tomá-lo novamente sem problema e sem precisar ir ao médico, ou, noutra situação, consultar-se com o seu farmacêutico que “receitaria” o medicamento.

Oras…

Esquece-se o Sr. das Farmácias que essa prática é perniciosa e perigosa. Junto com esse comportamento existe a receitação da vizinha, do tio, do colega de trabalho, etc. Todos por analogia perigosa vão impulsionando as vendas de balcão dos antibióticos.
Ora, vender aspirinas, anti-sépticos bucais e outros medicamentos de uso livre, com baixo potencial de dano à saúde é uma coisa, mas estender isso para antibióticos, anti-inflamatórios é coisa muito distinta.
Esquece-se, decerto, o Sr. das Farmácias que farmacêutico presente na farmácia é comum nas grandes cidades e nas grandes redes. No interior é muito comum o farmacêutico que “assina” a responsabilidade técnica por algumas farmácias, que se caracterizam única e exclusivamente por lojas de remédios. No mais a mais, Farmacêuticos conscientes são profissionais muito responsáveis e cônscios de sua área de atuação, conhecendo todos os meandros das drogas, formulações, manipulação de sais, legislação, cuidados de armazemagem, etc.

Nas “Lojas de Remédios” , um simples ponto comercial , que também existem aos montes nos grandes centros, estão os balconistas que vão assimilando as “receitas de bolo”: para dor de garganta –eritromicina; para inchaço – lasix, para dordolho- colírio de gentamicina, para infecção da bexiga – uropol.
Fica fácil entender que esses balconistas são uma seara fértil à manipulação dos vendedores de remédios das indústrias farmacêuticas de ética no mínimo duvidosa. É a chamada “empurroterapia”. O cidadão chega na loja de remédios e fala “estou com a digestão difícil, empachado” e toma lá um monte de coisa, sobre cuja venda o balconista vai ter um “bonuszinho” para engordar o salário no final do mês.

Triste, mas pura realidade.

Realidade atroz quando consideramos a venda de antibióticos.

As bactérias comunitárias ( e também as hospitalares), face ao uso indiscriminado de antibióticos vêm cada vez mais mostrando-se resistentes a vários medicamentos dos quais se esperava um prazo muito maior para isso acontecer.

São armas importantes que estão sendo “queimadas” porque vão ficando ineficazes em proporções cada vez maiores quando consideramos as infecções urinárias, respiratórias, de pele, intestinais, etc.

Vejamos, por exemplo, a ciprofloxacina nas infecções urinárias. Quando lançado, esse medicamento caro, uma fluorquinolona de terceira geração, era de eficácia próxima dos 100% em praticamente todos os principais germes comunitários e hospitalares. Hoje, poucos anos depois, vemos a sua eficácia cair para algo em torno de 80 a 70%, o que, sem dúvida, é uma tragédia.

Por isso, a medida é bem vinda para o bem da própria população, sem contar com outros efeitos adversos relacionados com o uso dessa classe de medicamentos, que não são inócuos.

É uma medida de saúde pública.

Por outro lado, fique bem claro, não se trata de angariar pacientes para os médicos, mas simplesmente levar a sério uma condição de saúde que precisa do cuidado médico e precisa de uma prescrição conscienciosa, baseada num diagnóstico correto e num acompanhamento da infecção que motiva o seu uso.

No final da mesma entrevista ao jornalista Heródoto Barbero, o “SR das Farmácias “ invocou também o fato da dificuldade da população de baixa renda ir ao médico. Isso não é bem verdade em parte e em parte não justifica a liberalidade irresponsável para sua solução (escondendo interesses puramente comerciais - para os quais a mesma população de baixa renda não tem dinheiro para entrar nesse jogo, diga-se de passagem). É o famoso argumento do “nivelar por baixo” uma prática muito comum no Brasil.

Os programas de saúde comunitária e da família, os postos de atendimento mais simples, estão cada vez mais difundidos em todas as cidades brasileiras: são postos de saúde, pronto-atendimentos, unidades de atendimento ambulatorial, hospitais primários e secundários, etc. , quase todos, inclusive, com dispensação gratuita de medicamentos.

O que não se pode conseguir é mudar do dia para a noite a mania dessa grande massa de brasileiros de procurar sempre o hospital antes dessas unidades básicas de saúde, que o brasileiro vê como um local ineficiente e desprezível, uma visão totalmente distorcida, anacrônica e falsa.

Esse blogueiro trabalha há 22 anos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC). Só muito recentemente uma medida administrativa corajosa e bombardeada no começo, mas mantida, reservou o Pronto-Socorro desse hospital para emergências referenciadas, ou seja, emergências graves, de nível terciário, que já foram vistas por uma unidade básica , hospitais secundários ou mesmo pelos paramédicos do SAMU, Bombeiros, em acidentes nas ruas e avenidas da cidade.

Antes disso, várias vezes o Pronto Socorro do HC quase entrou em colapso por ter que atender politraumatizados gravíssimos e complexos , lado a lado com unhas encravadas há um mês, corrimentos vaginais com uma semana de duração e bebedeiras de desocupados. Isso, sem contar, saberão bem os economistas e administradores que me lêem, a quanto gira o “taxímetro” da conta de uma unha encravada, quando ela passa pela porta de uma estrutura sofisticada e complexa para o porte de atendimento hospitalar do maior hospital público da América Latina . É recurso desperdiçado pelo ralo. O mesmo vale para o atendimento ambulatorial, registrando-se que para a população do entorno o hospital atende todos os diferentes problemas em sua complexidade (primário ao terciário) em bases organizadas e no volume restrito dos bairros vizinhos.

Para as pessoas que entendem de gestão fica claro que o problema de saúde pública no Brasil, pode precisar de muito mais investimentos do que tem, mas precisa de muita gestão também. E essa gestão é complexa porque tem que enfrentar aspectos culturais enraizados na população e nos próprios políticos, que muitas vezes, demagogicamente, as perpetuam. Para exemplo do descompromisso e falta de consistência da ação pública, em muitas cidades pequenas verifica-se que o “sistema de saúde municipal” se resume a uma grande frota de ambulâncias e até ônibus, renovados constantemente, para transportar os pacientes para a capital e cidades maiores, não apenas dos casos graves, que muitas vezes são minoria, mas de casos de diabetes, pressão alta, doenças crônicas, etc.

Isso nos leva à terceira necessidade, que se imbrica com todas as demais e é a mais grave, qual seja a da moralidade da gestão pública, do cuidado com a “res publica” , a coisa pública. Tão escorchada e aviltada nos mais altos postos do Poder (ou pudê = pudê fazer tudo o quiser) com mordomos a R$ 12.000, e todos os mais execráveis expedientes a espoliar a Viúva, com um cinismo a toda prova, totalmente descarado.

Mas, para concluir esse tópico, a hierarquização do sistema de saúde não é uma invenção. Está testada e aprovada como meio de atender bem e poupar recursos da forma mais humana possível - racionalizando o uso dos recursos.
Prova disso é o sistema de saúde britânico, dos mais conceituados e eficientes , que tem na hierarquia dos serviços e referenciamento dos níveis de complexidade o seu grande trunfo econômico e funcional.

Ainda no aspecto da omissão de longo prazo dos nossos políticos, o leitor, quando tiver um tempinho percorra as ruas e avenidas nos arredores do HC, num dia de semana, logo pela manhã e veja a quantidade de ambulâncias, vans, micro-ônibus e ônibus, observando suas placas de origem. Não se assuste se encontrar várias ambulâncias de cidades do sul de Minas e Rio de Janeiro, sem contar os pacientes de outros estados. Mas, o leitor poderá perguntar: Como hospital público, conveniado ao SUS ( e não do SUS), o hospital não é para todos os brasileiros ?

Sim e não. A maior parte dos hospitais públicos no estado de São Paulo, são estaduais e vivem com verbas orçamentárias estaduais, complementadas pelos repasses do SUS. O custo operacional é muitas vezes maior do que os valores repassados (hoje estimados num teto de 10 milhões de reais/ mês), uma fatiazinha do orçamento total do complexo ( que inclui vários institutos: o Central (HC que todo mundo localiza no prédio cinza), Instituto da Criança, Instituto do Coração, Prédio dos Ambulatórios, Instituto de Radiologia, Instituto de Ortopedia, Medicina Tropical, Instituto de Psiquiatria, Hospitais Auxiliares do Cotoxó e Suzano e o próprio ICESP ( Instituto do Câncer - também estadual) entre outros menores.
Assim, o atendimento de casos complexos de qualquer parte do Brasil e até do exterior nos lisonjeia e nos desafia ao melhor da nossa capacidade como corpo clínico, mas por outro lado causa-nos perplexidade o fato de brasileiros de outros estados precisarem se deslocar até aqui para tratar de coisas que poderiam ser tratadas em suas cidades, em suas regiões, houvesse um plano de investimentos na estrutura de saúde, contínuo e maior do que os personalismos a cada 4 anos e não apenas no transporte de doentes. Cidades e regiões onde os melhores médicos são conhecidos como Dr. Anhanguera, Dr. Raposo Tavares, Dr, Castelo Branco, Dr. Fernão Dias, Dr. Dutra e para os mais aquinhoados Dr. Tam , Dr. Gol e Dra. Varig. O que ao mesmo tempo desestimula a fixação e motivação dos médicos fora dos grandes centros, uma necessidade imperiosa para o País.

Aliás isso é sintomático. Nossos governantes dão bem a idéia de como cuidam da saúde em seu país e e em seus estados e cidades. O presidente Figueiredo foi fazer suas pontes de safena em Cleveland; já os presidentes dos Estados Unidos são tratados no Hospital Naval de Maryland. Alguns outros exemplos mais recentes mantém firmemente essa “política de padre” (”faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço” - use os nossos hospitais, que eu uso os particulares de S. Paulo) . Nada contra, mas eticamente, talvez, essa livre escolha devesse ser às expensas próprias e não às do contribuinte !

Nesse contexto complexo, deixo, pois, registrado meu aplauso a medida de controle mais rigoroso para a venda de antibióticos nas Farmácias e “Lojas de Remédios”. Uma medida de algumas pessoas responsáveis, dentro do poder público, que, mesmo que contra muitos e quase todos, está seguindo princípios técnicos e científicos, senão, também a consciência do dever de olhar por todos nós, mesmo que o remédio aparentemente seja amargo!

Viaje o leitor para qualquer país decente, entre em uma farmácia e tente comprar o que aqui compramos como se fossem balas ou chocolate.

Porque será, não?

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